Em 31 de agosto de 2018, o então candidato presidencial Jair Bolsonaro disparou a arma inicial em um frenesi de grilagem de terras na Amazônia.

    “Aqui em Rondônia temos 53 unidades de conservação e 25 euterritórios indígenas. É uma loucura o que se faz no Brasil sob a bandeira do meio ambiente”, disse em entrevista coletiva em Porto Velho. “Isso tem bloqueado o avanço de quem quer investir no agronegócio e até na agricultura familiar. Vamos encontrar uma maneira de reverter isso.”

    Encorajado por esta e outros anúncios de Bolsonaro, as pessoas começaram a invadir florestas protegidas e desmatar terrenos, antes mesmo que os resultados das eleições fossem conhecidos. Cinco dias antes do segundo turno das eleições, centenas de famílias entraram na mata nacional do Bom Futuro, no município de Porto Velho. No mês de janeiro seguinte, já com o novo presidente em Brasília, dezenas de homens tomaram parte do território indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no município de Jorge Teixeira, em Rondônia.

    Esse movimento ganhou força nas últimas semanas. Outras cinco unidades de conservação estaduais em Rondônia foram invadidas: Parque Guajará-Mirim, estação ecológica Samuel e as reservas extrativistas Rio Preto Jacundá, Aquariquara e Ipê.

    Dessas cinco áreas, apenas Ipê foi desocupado, após decisão judicial tomada a pedido do Ministério Público de Rondônia e do Ministério Público Federal de Rondônia, que estão tomando providências para reverter as demais invasões.

    Landless worker Sebastião Pereira, 70, rests in his tent in an encampment in Rio Pardo village, in Rondônia (All photos: Lalo de Almeida/Folhapress)

    No mês passado, invasores acamparam em frente à casa do governo estadual em Porto Velho para exigir a regularização de terrenos no Parque Guajará-Mirim e sua zona de amortecimento. O monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostrou que 979 hectares de terras foram desmatados ilegalmente nos últimos 12 meses, isso em uma área em que a floresta estava praticamente intacta.

    Na Floresta Nacional do Jacundá, existe a ameaça de um acampamento de sem-terra montado em agosto em uma das vias de acesso, mas ainda não ocorreu nenhuma invasão.

    Enquanto ocorrem invasões de terras indígenas e áreas de conservação na região amazônica, terminam as ocupações de grandes latifúndios. Não há um único caso desse tipo em Rondônia há pelo menos quatro anos, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Sob Bolsonaro, houve apenas cinco casos em 2019 e nenhum este ano.

    A mudança de foco também reflete uma mudança nos principais atores. No lugar de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que faz campanha contra a invasão de áreas de conservação e terras indígenas, chegaram associações desconhecidas e recém-criadas. Essas associações, assessoradas por advogados e escritórios de georreferenciamento, com envolvimento de pecuaristas da região, partidários de Bolsonaro, contam com o apoio de políticos de direita locais.

    Eles tentam se distanciar da imagem tradicional dos trabalhadores rurais sem-terra, com sua oposição aos pecuaristas. Um dos apoiadores desses movimentos em Rondônia é o deputado federal Coronel Chrisóstomo, oficial da reserva do Exército.

    Um realinhamento religioso também está ocorrendo. A Igreja Católica, que tem laços estreitos com o MST e produziu defensores históricos da reforma agrária na região amazônica, como o bispo Pedro Casaldáliga e a irmã Dorothy Stang, perdeu terreno. Enquanto isso, igrejas evangélicas costumam ser encontradas nas áreas recém-invadidas.

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    Boa Esperança camp, in the the village of Rio Pardo, Rondônia

    Além da retórica de Bolsonaro contra as áreas protegidas e o MST, outro grande incentivo para a invasão de áreas protegidas em Rondônia é o sucesso recente desses esforços. Em 2010, durante o governo Lula, a Floresta Nacional Bom Futuro viu sua área reduzida em dois terços para legalizar invasões ocorridas principalmente no governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

    Na esfera estadual, o governador de Rondônia, coronel da polícia militar Marcos Rocha, apresentou este ano um projeto de lei à assembleia estadual que visa legalizar as invasões de Jaci-Paraná, que afetariam 146 mil hectares de terra. Cerca de 55% da unidade de conservação já foi desmatada, segundo o INPE.

    Construído em terreno desbravado por invasão mais antiga, o acampamento Bom Futuro foi demolido em 10 de setembro de 2019, em operação da Polícia Militar, após ordem judicial obtida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), braço administrativo do Ministério do Meio Ambiente. Cerca de 200 famílias foram removidas.

    Algumas das famílias deslocadas acamparam em torno de uma escola abandonada na aldeia vizinha de Rio Pardo, na esperança de serem autorizadas a se estabelecer. Quando a Folha esteve lá, em agosto, eram cerca de 60 famílias.

    Suas condições de vida são precárias. Há dois banheiros no acampamento, que ficaram sem água por cinco dias. As crianças, que não estão na escola no momento devido ao surto de Covid-19, costumavam passar cinco horas em um ônibus para ir e voltar da escola.

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    José Roberto de Jesus, 47, spokesman of the Boa Esperança camp

    O porta-voz do grupo é José Roberto de Jesus, 47, baiano. Ele é uma das pessoas que acreditava que a floresta Bom Futuro seria dada aos trabalhadores sem-terra – termo que evita, ao invés de “agricultores”. Sua família migrou para Rondônia em 1984, mas nenhum deles conseguiu adquirir um pedaço de sua própria terra.

    Jesus, que é pai de cinco filhos, trabalha na indústria do cacau, ocupação original da família na região de Ariquemes. Ele não tem escolaridade formal, mas já trabalhou como mineiro, ferreiro e carvoeiro. Ele diz que o avanço das plantações de soja, pecuária e piscicultura tem reduzido a oferta de empregos, já que são atividades que geram pouco emprego.

    Ele não foi um dos líderes da invasão, que desapareceu após a denúncia apresentada pelo Ministério Público. Após o despejo, seu discurso calmo e articulado o ajudou a ganhar ascendência no grupo, onde foi apelidado de Pastor.

    Repetindo a história contada por outros que participaram da invasão, Jesus conta que foi incentivado a entrar no Bom Futuro por causa do apoio dado pelos fazendeiros. “Nunca tive o hábito de invadir algo que é alheio, mas surgiu uma oportunidade única e me levou até aquela terra. Os fazendeiros nos colocaram lá, pois estavam brigando com o governo, que tomou suas terras e as transformou em reserva. Eles preferiram perder suas terras para trabalhadores sem terra do que para o governo.”

    Questionado sobre o risco de os fazendeiros retomarem as terras caso fossem regularizadas, ele responde: “Tivemos que pagar um preço. Tivemos que arriscar.

    “Sou evangélico. Deus não permite que invadamos nada que pertença a outra pessoa, mas e se você estiver em terras pertencentes à União? Quem é a União? O Sindicato somos nós – somos trabalhadores. Estávamos vivendo do que era nosso por direito, por lei. Não invadimos nada pertencente a mais ninguém.”

    Jesus diz que votou em Bolsonaro e que a conversão da Flona em assentamento depende apenas do governo. “Não entendo esse negócio de fauna [of] Bom Futuro, mas entendemos que é terra boa. Confiamos no governo, e em sua campanha ele [Bolsonaro] disse que havia muitas reservas em Rondônia, mas estavam degradadas.”

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    Uma árvore queima na Floresta Nacional do Bom Futuro

    Poucas semanas após a entrevista, o Bom Futuro foi novamente invadido, desta vez por um grupo diferente. A Polícia Militar de Rondônia ainda não lançou outra operação de reintegração de posse. Desde o início deste ano até agosto, mais de 575 hectares foram desmatados, segundo monitoramento por satélite feito pelo MapBiomas Alerta.

    “Muitas famílias procuravam um acampamento para se hospedar, na esperança de obter posteriormente um terreno por meio do processo de reforma agrária. Hoje essa perspectiva não existe mais”, afirma o coordenador da ONG Terra dos Direitos, Darci Frigo, ex-presidente do conselho nacional de direitos humanos.

    “Eles vão se instalar nas margens ou em locais onde há indígenas, quilombolas [members of quilombos, settlements formed centuries ago by escaped slaves], e áreas de proteção permanente. A tendência é generalizar as invasões. Não é que os pobres sejam inimigos do meio ambiente. É que o rico, ao manter o pobre vivendo na pobreza, acaba criando as condições que levam à degradação ambiental. Além dos grileiros, tem gente pobre que estava esperando a reforma agrária”.

    Sobre Bolsonaro, ele diz o seguinte: “Sua retórica ataca indígenas, quilombolas e trabalhadores sem terra. Desmoraliza essas pessoas aos olhos da opinião pública e simultaneamente sinaliza uma ordem para apoiar as invasões de terras públicas.”

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    A Jair Bolsonaro sticker on the walls of a tent in the Boa Esperança camp

    According to geographer Ricardo Gilson da Costa Silva, of the federal university of Rondônia, Rondônia is following the same path as Mato Grosso com o avanço das plantações de soja, que sufocam as pequenas propriedades e pressionam as grandes pecuárias a buscar novas áreas. O resultado é mais desmatamento no norte do estado e no vizinho sul do estado do Amazonas.

    “Isso significa desmatamento”, diz Silva. Ele descreve as recentes invasões como “agrocriminalidade”.

    “Não é um movimento social. São movimentos econômicos e políticos patrocinados por pecuaristas, empresários e políticos locais. Patrocinam invasões de áreas protegidas, levando trabalhadores sem-terra carentes de terra, de modo a criar uma situação que não pode ser revertida. É o que está acontecendo em Jaci-Paraná, onde os seringueiros foram despejados e há até pistas de pouso agora”, disse.

    “É um projeto político e territorial de converter áreas de proteção ambiental em pastagens, para depois entregá-las ao mercado fundiário e deixá-las para pecuária e grãos. É algo que foi pensado”, diz.

    Em Rondônia, Bolsonaro venceu o segundo turno da eleição com 72% dos votos, o terceiro maior percentual do país, atrás apenas dos estados do Acre e Santa Catarina. O governador do estado, Marcos Rocha, aliado do governo federal, não respondeu aos pedidos de comentários.

    Esta reportagem faz parte do The Amazon under Bolsonaro, uma colaboração entre a Folha de São Paulo e Climate Home News. Traduzido do português por Clara Allain.

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    Giselle Wagner é formada em jornalismo pela Universidade Santa Úrsula. Trabalhou como estagiária na rádio Rio de Janeiro. Depois, foi editora chefe do Notícia da Manhã, onde cobria assuntos voltados à política brasileira.